sábado, 20 de dezembro de 2008

Era mais uma daquelas festas de fim-de-ano. Helô era uma das chefes mais odiadas na repartição. Ela se defendia dizendo que não guardava para depois, o que tinha para falar, falava, não media expressões, não poupava corações. Era uma verdadeira diaba. Ofendeu a zeladora porque percebeu pó sobre as mesas, ofendeu o técnico de informática porque abriu um email particular, delatou a secretaria porque ela saiu mais cedo para levar sua filha no médio, ameaçou o office boy caso ele não levasse um documento em tal lugar dentro de um prazo humanamente impossível. Mergulhada em seu próprio orgulho, Helô não percebia o olho ruim que todo mundo lançava sobre ela. Mas ela estava na festa e, na surdina, muitos prometeram se vingar. Uma brincadeira foi criada, era um karaokê. Helô tinha pavor disso, não porque achasse sua voz esganiçada ou a falta de sincronia entre sua voz e a melodia. Ela tinha pavor de julgamento, embora fosse dura, crica, brava, Helô não gostava de exibir, de se mostrar frágil para ninguém. Foi aí que a chamaram, seu nome havia sido sorteado e ele, como castigo, como mico, deveria cantar uma música. Os pedidos foram tantos, os clamores, que ela não teve como resistir, levantou e dirigiu-se até o palco improvisado. Seu olho era outro, menor, mais brilhante, estava decididamente muito assustada. Começou a cantar, não houve muito tempo, a platéia estava silenciosa, julgando, mas não ela cantando, apenas ela, Helô. Começou silenciosamente, uma vaia fina, aos poucos ela foi crescendo, se estendendo, tomando conta do lugar. Helô seguro uma nota entre os dentes, engoliu o susto como se estivesse digerendo um enorme pedaço de cacto. Muda, desceu do cenário e lentamente saiu de cena. Na mesma noite, ela tomou dois vidros de diazepan, foi encontrada morta, em adiantando estado de putrefação duas semanas depois...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

o drama da lagarta


há pelo menos um mês acompanhamos aqui em casa um drama, uma verdadeira novela do reino animal, com direito a reviravoltas e tudo, cujo final, por incrivel que pareça, ainda pode surpreender. Trata-se de uma lagarta, peluda, repulsiva como toda a lagarta costuma ser. Bicho intratável, intocável (lembra que ela queima), Primeiro se encontrava toda perigosa sobre o teto da minha garagem, não representava risco, estava alta, mas mesmo assim, a bichinha impunha sua autoridade, não me toque, senão eu toco foco. Um dia ela parou, bem na soleira na porta, congelada, dura, parecia petrificada. Aos poucos foi pendendo para baixo, perdeu sua cor escura, como se o negro fosse desbotando, como se, todo aquele fogo escondido dentro dela ficasse silencioso. Ao passo que, sua pele foi ficando cinza, um cinza de estátua mesmo. A lagarta estava aprendendo sua própria transformação. Depois disso, ela ficou pendurada, bem no centro da minha porta. e aquilo que era motivo de medo e repulsa, tornou-se nosso mistério diário, nossa poética novela. Acordamos e quase que instantaneamente vamos ver se a lagarta finalmente tornou-se borboleta, se abandonou seu casulo, se resolveu também nos abandonar. Ela ainda continua lá, conspirando contra sua feiúra inicial, tornando bonita, elegante, com asas. E nós aqui, aguardando cheio de esperanças as outras transformações esse bichinho vai nos provocar...

sábado, 27 de setembro de 2008

o homem do amanhã

"Amanhã eu começo tudo de novo." Essa é a frase preferida de Pedro. Tudo ele deixava para amanhã. Fumava e decidiu que "amanhã eu largo desse vício". Engordou também e enquando comia um brigadeiro de panela, pensava "amanhã eu paro de comer doce". Aquele livro sobre a cabeceira da cama, já estava até com teia de aranha, "amanhã eu retomo a leitura". E aquela moça que sempre dava-lhe a maior moral, "amanhã eu falo com ela". Um dia, pela manhã, encontraram Pedro morto, o cadáver já estava em rigor mortis. Os legistas dizeram que ele havia morrido durante a noite, vitimado por um fulminante ataque cardíaco. Pedro não viu o amanhã que tanto esperava.